o salto

uma das questões que mais me interessa tem a ver com a forma como lidamos com o mundo através da internet. creio existir um efeito cumulativo no passar do tempo, um aspecto residual de ruído de fundo que vai imperceptivelmente aumentando, dado que acompanha necessariamente o crescimento demográfico humano. o mundo parece mais complexo hoje em dia, mas na verdade está tão-somente mais barulhento e mais coercivamente intrusivo, por razões económicas. assim, uma questão será saber se o advento da internet nos ajuda a compreendê-lo melhor, constituindo a ferramenta natural para receber toda essa heterogeneidade tumultuosa, ou se, pelo contrário, ela contribui para a percepção de uma realidade atomizada e impossível de apreender na sua completude, dada a voracidade com que é traduzida pelo que se chama informação. este interessante artigo (via efeitos secundários) põe a questão de como a nossa forma mais comum de utilizar a internet justamente como fonte de informação poderá estar de algum modo a conformar a maneira de organizarmos o nosso pensamento, partindo do pressuposto que o fazemos de uma forma demasiado diletante e ligeira, em prejuízo de uma leitura (literal) lenta e profunda que por sua vez igualaria uma forma de pensar igualmente profunda. ou seja, a procura desmedida pela eficácia nos resultados incorreria em tal Taylorismo que nos transformaria a nós em meras pseudo-máquinas pensantes inferiores aos modelos que produzimos. a dúvida e o medo são pertinentes, porque julgo que nada está a ser feito a nível pedagógico para acompanhar o percurso de aprendizagem dos alunos neste novo pluri-meio, que necessita de tanto rigor, apoio e avaliação como a busca arcana directa em manuscritos e a audição activa de discursos orais. além disso, existe o perigo de a maior parte da informação ser controlada, não tanto ao nível do conteúdo mas sobretudo ao nível da forma de acesso para o público em geral. ou seja, acredito que a informação válida continuará sempre a existir, mas terá a sua disponibilidade restrita a diversos níveis por um único centro decisor, o que convida a abusos.
existem aqui diversos pontos válidos para discussão, mas não entrarei em profundidade em qualquer deles por agora. interessa ponderar contudo o seguinte: a internet tem semelhanças com um infindável mercado público, onde tudo ou quase tudo estivesse em maior ou menos exposição e à venda (por mui variados géneros de preços), pelo que as regras mais elementares de conduta num mercado real também se aplicam aqui, tal como sejam a discrição, a prudência, o sentido crítico na avaliação das mercadorias e do discurso - berrado ou sussurrado - do vendedor, a atenção ao que é dito e como é dito, o cuidado com os recantos mais sombreados, as zonas de silêncio súbito, as multidões, enfurecidas ou não, até as disputas ou execuções públicas. ou seja, cada um vai ao mercado com uma intenção diferente e de lá traz coisas diferentes. é tudo uma questão de disciplina. se não compramos tudo o que há num hipermercado apesar de eles estarem desenhados para esse efeito, também não "compramos" tudo o que há na net. podemos de facto entrar por causa de lenços de papel e sair de lá com vinho, mas cada um tem de medir a sua actuação e responsabilizar-se pelas suas tentações. ao contrário do que possa parecer, a net tem a vocação para se tornar uma arena de responsabilidade, já que tem memória de tudo. temos, assim, de nos tornar filtros para nós mesmos. em vez de diluir a atenção e prejudicar o sentido crítico, a net pode e deve estimular a concentração e a análise exigente - são aliás as únicas ferramentas que nos podem orientar nos labirintos mercantis. ou seja, o medo de que a net prejudique a nossa capacidade de reflexão profunda e acabe por nos tirar tempo ao dar-nos coisas instantaneamente advém de uma visão limitada do que é a experiência online, uma visão, digamos, um pouco retrógrada, porque no fundo totalmente hipnotizada pelas novas possibilidades sem as conseguir digerir ou sistematizar. porque justamente a internet permite um comportamento em tudo semelhante ao do estudioso paciente e sistemático - não se deve confundir falta de força de vontade com o sucumbir perante o assalto de certos dispositivos de marketing que se esforçam por fazer parecer que estão a acontecer coisas demais demasiado rapidamente e que por conseguinte teremos de agir sem demora (e sem critério), comprando ou falando. o tempo é um factor a favor da net, não contra ela. a escolha do que se lê permanece, acrescida da nova sapiência sobre a redacção oral, ou seja, a mais recente maneira das pessoas dialogarem, utilizando os processos e muletas dessa forma de comunicação, mas simplesmente fazendo-o por escrito, o que dá origem a um sem-número de equívocos, já que apenas a presença física é suficientemente rica para comunicar em plenitude sem ambiguidades não desejadas (nunca é só a boca que fala). ou seja, os famosos comentários em blogues ou trocas de opiniões em fóruns são muitas vezes tão válidos como conversas de café, apressadas, incoerentes e obscurecidas pelo ruído de fundo - estimulantes, essenciais, amiúde iluminadoras, mas também tão vivas que precisam de som e de vida tão curta que o seu registo é, as mais das vezes, imediatamente esquecido. o que não acontece aqui, neste mundo que nunca esquece. a capacidade para esquecer pode ser equivalente em relevância à capacidade para lembrar. e na internet fala-se, não se escreve - pelo menos por enquanto. o que não quer dizer que não se possa e deva ler. por fim, é preciso relembrar que o mapa não é o território. a net é hoje o melhor dos mapas, mas ela não se substitui à experiência directa, ao contacto imediato com o concreto e com as suas misteriosas riquezas e murmúrios. citado no texto a que aludi, Sócrates lamenta que a escrita (e a leitura) diminuam a experiência do vivido oralmente e a sua consequente memória - ou seja, tornaria as pessoas mais preguiçosas e iludidas com o seu próprio conhecimento. cada salto tecnológico parece confirmar isto. e contudo, quando se salta aterra-se em território estranho e cada território é mais rico em possibilidades do que se podia antever quando flectimos os joelhos mentais. o truque, o busílis, está em nunca abandonarmos os passeios a pé mesmo quando dispomos de uma experiência de estimulação/simulação total ligada ao córtex cerebral que nos sirva de mapa - agora que podemos levar o mapa connosco, podemos talvez ter uma melhor percepção do que é, em si, uma percepção do mundo. a net dá-nos mais informação sobre o mundo mas nunca nos dará o mundo a que é necessariamente referente. quanto muito, dá-nos o mundo que ela própria constitui. a coisa está em como a lemos. porque, na verdade, não é apenas o que lemos que nos transforma, mas o modo como o fazemos. não interessa ler muito, se não vai ficar nada. parece melhor escolher apenas um caminho de início e percorrê-lo devagar. o salto acontece sem darmos muito por isso.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bravo! Na mouche!

Será que nos dias de hoje o JLB (personagem) ainda se esqueceria do seu Livro de Areia numa estante esquecida na Rua México, ou já andaria com ele no bolso para poder folheá-lo de vez em quando? ;)

pedro soenen disse...

somos todos personagens incompletas de JLB e o Livro de Areia o compêndio dos sonhos que tomamos pela vida :)