O espartilho é uma das peças de vestuário mais influentes e poderosas de todos os tempos. Iniciático, tanto oculta como dá a mostrar e impõe a sua vontade ao restante vestuário, como um imperador nas sombras. O aparente paradoxo subjugador do olhar e da carne torna-o um perfeito conciliador dos sexos – os homens-visuais e as mulheres-sensações juntos no mesmo deleite, a qualidade apaziguadora da admiração tornando suportável/desejável o desconforto. No jogo das dualidades, o espartilho é um exemplo justo das contradições humanas entre o que se deve ver e o que se deve esconder, o que se protege e o que se cobiça, a intimidade e a promiscuidade, a submissão e a dominação, o prazer e a dor.
Historicamente, a ideia de espartilho existe desde os tempos primordiais em que as mulheres usavam peles humedecidas em redor do torso, que, uma vez secas, apertavam as suas formas – presumivelmente para melhor atrair os machos dominantes. Com mais ou menos tecnologia envolvida, desde o couro e o tecido às barbas de baleia e ao aço, a engenharia do espartilho sempre foi uma arte tão delicada como robusta, permeando a história do vestuário com a sua influência nem sempre reconhecida, mas sempre presente, com destaque para o século XIX, onde reinou sem oposição, e consequente ressurgimento fulgurante no século seguinte.
Politicamente, foi um dos estandartes das primeiras feministas como símbolo da opressão machista e mártir na fogueira das ideias adversas ao progresso, sendo substituído pelo soutien. Curiosamente, a sugerida incomodidade provocada pelo espartilho nunca se manifestou em termos de igualdade ou disparidade entre os sexos durante o longo período da sua preponderância, mas apenas quando a própria moda contra ele se revoltou, “libertando” as mulheres dos seus atilhos.
Socialmente, o espartilho foi sinal de estatuto - se uma mulher espartilhada era incapaz de realizar qualquer tipo de tarefa prática é porque obviamente não precisava de o fazer – , castidade – as mães espartilhavam as filhas como protecção/correcção, dando perversamente aso a fantasias febris - e condicionador de relações - uma forma de dominar comportamentos mais levianos, obrigando a portadora a exercitar um apertado auto-controlo, sinal de estabilidade mental e emocional – donde a dicotomia em língua inglesa entre “straight-laced” e “loose women”. Em 1886, um anúncio dos espartilhos Warren prometia que toda a gente admiraria uma jovem devidamente equipada e, mais ainda, que assim ela em poucos dias conseguiria um casamento respeitável!
Do mundo da arte, destaquemos duas imagens, já do século XX: a fotografia de Horst P.Horst de uma jovem loura com um espartilho de Mainbocher, um ícone de ressonâncias clássicas; e a de Jeanloup Sieff, com uma elegância nouvelle-vague de modernidade desarmante. Ambas focam a silhueta espartilhada como coluna de força que dispensa quaisquer outros elementos de composição – incluindo a portadora humana, único acessório numa paisagem despojada.
A força iconográfica do espartilho deve-se essencialmente à sua natureza sexual, contudo. Ele é um símbolo de feminilidade, o arquétipo do corpo da mulher materializado numa armadura/prisão, que o divide ao meio - razão pela qual também é tão atraente para os homens, quer os de outras épocas, quer os que se querem parecer com mulheres. Em várias culturas o uso de espartilho masculino é um rito de passagem e a cintura pequena era considerada na moda nos séculos XVI e XIX, ligações culturais que explicam a sua popularidade junto dos “Primitivos Modernos” e adeptos da “body-modification”. Que outra peça obriga tão completamente as mulheres a serem “mais” mulheres, lisonjeando-as ao mesmo tempo que as imobiliza? Ao realçar o peito e as ancas, as duas zonas erógenas mais proeminentes, o espartilho é um convite (visual, táctil e... cruel, porque evidencia simultaneamente a distância e dificuldade do objectivo) ao prazer e está ligado à imagem da fertilidade – os estrógenos, as hormonas sexuais femininas, ajudam a acumular gordura nas nádegas, tornando a cintura opticamente mais pequena. A mensagem seria algo como “não estou grávida, mas sou fértil”. Não é a delgadeza alcançada o factor vital, mas sim a proporção.
A ritualização associada ao espartilho tornou-o numa peça de eleição dos subgrupos sexuais mais alternativos e a sua fetichização natural transformou-o num símbolo simultaneamente transgressor e afirmativo de uma sexualidade confiante. A moda do século XX ilustra bem esta condição aparentemente contraditória. Nos anos do pós-guerra, por exemplo, o luxo estava associado à culpa, razão pela qual a coleccção de Dior de 1947 foi considerada escandalosa, pela quantidade voluptuosa de tecido usada e pela extrema feminilidade dos modelos de cintura de vespa. As mulheres desconfiavam de quaisquer roupas que toldassem a sua liberdade de movimentos recentemente conquistada e o uso de espartilhos foi considerado então fora de moda e depois puramente fetichista. Mas a alta costura gosta de ter amigos em lugares baixos, e o flirt contínuo com as cinturas de ampulheta é bem visível em Gaultier, Lacroix ou McQueen, para apenas citar alguns criadores que re-imaginaram o espartilho como símbolo de luxo, avant-garde e sofisticação. Em épocas de falta de imaginação ou inspiração, ele tornou-se numa “amuleta” regular para estilistas e consumidoras.
O uso normal de espartilho não é desconfortável nem doloroso – a sensação mais parece de um abraço longo e abrangente, que suporta e corrige a postura, cadenciando a respiração e aumentando dramaticamente a consciência do torso. A aparência melhorada motiva naturalmente a auto-estima. E o apertar extremo dos atilhos (o chamado “crush-lacing”, não aconselhável por períodos de tempo muito longos) causa uma pausa na respiração e uma consequente excitação erótica. Evidentemente que se pode pensar que as sensações de dor/prazer provocadas transformaram a sensualidade victoriana “reprimida” em puro masoquismo – o que era, naturalmente, adequado a uma senhora de então. Este constrangimento é particularmente apreciado pelos cultores SM e da imobilização erótica, por parte de dominadoras (imagem da armadura e invencibilidade) e de submissas (a vergonha de usar um espartilho por baixo das roupas de trabalho, de se passear pela casa apenas assim vestida, ou a efectiva limitação de movimentos). Ethel Granger primeiro e actualmente Cathie Jung, alcançaram a notoriedade no submundo das pulsões fetichistas com as suas cinturas de 38 centímetros, medida extrema disputada por várias outras pretendentes ao trono de rainha-vespa. O desafio secreto da sensação de se conseguir apertar mais uns centímetros é um dos estímulos mais fortes para as mulheres se revestirem de bom grado desta segunda pele; tal como ir ao ginásio, os resultados compensam. Quem escolhe usar um espartilho não tolerará desconforto ou uma servidão forçada, e a crescente aceitação de comportamentos sexuais alternativos permite a exploração plena das muitas aplicações do espartilho, tal como o seu uso por cima da roupa se revelou uma peça de vestuário muito sexy e atraente. Objecto-mulher por excelência, o espartilho faz parte integrante da indumentária do Desejo.
in Umbigo #14 (2005)
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