on fire

“Sometimes a wind blows ,
And the mysteries of Love
Come clear”
(D.L)


O olho ajusta-se à iluminação direccionada, aos contrastes entre a semi-obscuridade dos recantos e o brilho ofuscante que banha certos objectos, o ouvido imbui-se da sonoridade morna e insistente, e ambos se deixam contaminar pela tactilidade que emana das paredes, do solo e do ar – o ar está a arder e este é um pedaço do universo Lynchiano, um universo de onde por vezes não se volta.
Ao longo de um corredor da exposição de David Lynch The Air Is On Fire na Fundação Cartier em Paris, imagens a preto e branco sucedem-se com a cadência de um ritmo orgânico, representando corpos implodidos ou manipulados pela acção do fluir do subconsciente do artista. Desenhos e pinturas inscrevem-se nos mais diversos suportes, reflectindo a espontaneidade do impulso criativo de David Lynch, que gosta de se sentar num diner de esquina em Los Angeles e pensar e rabiscar no papel de mesa ou no guardanapo ou numa caixa de fósforos as ideias/formas que assomam ao seu espírito disponível. Esta disponibilidade da mente para se deixar emboscar pela energia do mar subterrâneo do subconsciente, concretizar as ideias colhidas na criação de uma relação entre narrativa e imagem e assim esforçar-se para criar uma empatia entre as pessoas e entre estas e o universo, constitui a base do trabalho de Lynch – com os resultados que se conhecem e o tornaram único, as imagens e as personagens que nos assombram desde que por ele fomos iluminados.
Lynch costuma afirmar que faz filmes para proporcionar ao público um local para sonhar. Para além disso, assegura que em noventa por cento do tempo que está a realizar, não sabe intelectualmente porque é que está a fazer o que faz. Estas afirmações fulcrais são iluminadas pelo entendimento que Lynch aprendeu a contar histórias sobretudo a partir das suas  influências como jovem estudante de pintura (actividade que manteve paralelamente e em alternância com a de realizador) – concretamente as obras de Francis Bacon, Jackson Pollock, Robert Henri e Edward Hopper. Desde muito cedo que Lynch apreendeu como a narrativa pode levar-nos à verdade e uns aos outros, se nos fizer sonhar. O paradoxo fundamental, contudo, é que a lógica da narrativa pode empurrar a expressão artística para um sistema de convenções e limitações que constitui por sua vez um obstáculo para a mente sonhadora. Tal como Bacon identifica a narrativa como uma expressão da vontade humana e torna o objectivo da sua arte a vontade de perder a vontade própria (“the will to lose one’s will”), Lynch refere a sua determinação em “sair da frente do caminho da tinta e deixá-la falar”, postura que adopta igualmente como realizador, procurando encontrar maneiras de reter a vontade consciente e levar para o ecrã a verdade do sonho. Esta ligação ao subconsciente  é essencial para evitar que as convenções e os clichés a que necessariamente levam coisas como a linguagem abafem a liberdade e criatividade de uma obra artística. Quando realiza um filme, através de processos como a meditação, Lynch procura libertar-se para receber ideias, imagens e impulsos a que de outra forma não conseguiria aceder (ele referiu-se ao procedimento como uma forma de “pesca”). Sonhar significa, assim, um “deixar-se ir” consciente. E este “deixar-se ir” implica uma comunicação, a abertura de uma passagem, entre a “realidade” ilusionista (a imposta por processos puramente racionais, falsamente confortável – a Laura Palmer ferida na cidade de Twin Peaks) e a “verdadeira” realidade (percebida diferentemente por cada um – a Laura Palmer visionária, redimida, do Black Lodge), numa viagem não isenta de perigos e perplexidades.
Os seus filmes foram quase sempre recebidos com estranheza pelo público, pouco habituado a estar disponível para cancelar a sua percepção de formas narrativas convencionais e repetitivas, com os seus lugares “seguros”, e abrir canais de recepção às pulsões mais perturbadoras (mas também mais vitais, mais verdadeiras e, no caso de Lynch, essencialmente positivas) que resultam do choque de subconscientes. Essa estranheza – que pariu a expressão descritiva “lynchiano” - biforcou-se em posições opostas que, a maior parte das vezes, perpetuaram equívocos relativamente à obra de Lynch. Por um lado, os puristas das primeiras obras (Six Men Getting Sick, The Alphabet, The Grandmother e Eraserhead) sentiram-se “traídos” pela Hollywoodização de Lynch (nomeadamente por O Homem Elefante e Dune); os outros rotularam-no de estranho, perverso, voyeurístico, subversivo (o que ele não é), mas sempre com o gosto culpado de o adorarem sem que (ou justamente porque não) o percebam. Ora, David Lynch nunca alterou substancialmente o seu veio criativo e postura como autor ao longo do seu percurso artístico (até INLAND EMPIRE, uma pequena revolução no seu universo pelo uso do vídeo digital, que certamente ditará a forma da sua evolução).
A escolha em criar filmes em Hollywood (e, em diferente escala, o investimento no site de Internet) traduz a sua percepção das contradições, energias e intensidades que existem na cultura de massas e na capacidade (e oportunidade) do filme de Hollywood em potenciar a abertura da cultura às suas verdades, através da mistura heterogénea da autoridade do racional e da autoridade do não-racional, que por exemplo Bacon e Pollock criaram nas suas obras – ao serem menos ordenados em termos racionais, reflectem a forma como realmente percebemos/intuímos (o real). Longe de poder ser considerado um freak (foi convidado por George Lucas para realizar O Regresso do Jedi), senhor de um carisma considerável, Lynch faz parte de uma tradição de um pequeno grupo de realizadores de Hollywood que, tal como ele, no seu tempo foram considerados chocantes ou excêntricos, quando na verdade estavam a criar novas possibilidades para a expressão artística. Dos seus ilustres precursores, destacam-se Alfred Hitchcock e Orson Welles que, parecendo estar isolados em Hollywood, a estavam a mudar para sempre. A sua ligação a Lynch é relevante na medida da influência que atribuíram ao subconsciente na moldagem da sua visão pessoal, mais do que o controlo que se sabe que impuseram às suas produções – existem muitas diferenças de estilo de realização, reflectindo também as respectivas épocas e políticas de estúdios, mas o que nos importa é que o resultado no ecrã das suas obras (em maior ou menor grau) traduz a luta pela expansão da narrativa, pela sua qualidade mais devedora do sonho, no mesmo sentido que Lynch lhe atribui.
A tensão criada pela colisão entre elementos narrativos e não-narrativos na pintura (uma  herança de Bacon), a que podemos acrescentar as possibilidades sonoras do cinema (essenciais na compreensão do seu universo),  permitem a Lynch vislumbrar um local (um “third place”, se quisermos ironicamente usar a expressão da publicidade da Playstation2, para a qual ele contribuiu com anúncios inesquecíveis – incluindo um monólogo de um esquimó cego sobre o que é a visão) que escapa à sobredependência da razão e dos seus clichés, onde o olhar (e a percepção) flui livremente, num movimento perfeito. É conhecida a sua predilecção pela forma do corpo do pato, como modelo de circuito de energia narrativa. A sua elegância e forma de S que evocam um fluxo incessante, ecoam uma empatia entre olhar e forma, a forma que a Arte incarna quando a herança cultural do artista e a Natureza entram em diálogo – e a presença da Natureza sente-se em toda a obra do homem de Montana, com destaque para Twin Peaks e Veludo Azul, com o vento sublime a manifestar a existência do ar como elemento unificador primordial, aquele que está simultaneamente dentro e fora de nós, que nós controlamos e que nos controla. Mas é o olho do pato que desafia o nosso entendimento em como as partes se encaixam, o ponto focal em que nos detemos aquando do nosso passeio visual, dado que destoa vibrantemente do resto do corpo – constituindo simultaneamente o ponto de onde tudo emana. Este “olho-do-pato” é um elemento essencial nos filmes de Lynch, consistindo no preciso momento em que o protagonista é despojado da sua vontade em favor da torrente de acontecimentos que o envolve, prelúdio para a conclusão do filme, mas não no sentido tradicional de clímax (normalmente dependente da vontade do herói). Exemplos destas cenas de “olho-de-pato” são a da casa de Ben em Veludo Azul; aquela em que o Homem-Elefante vai a um espectáculo de pantomima no filme do mesmo nome; e aquela onde Sailor e Lula descobrem uma rapariga a morrer num desastre de automóvel em Um Coração Selvagem. Na aparência gratuitas, todas elas sublinham o momento decisivo em que os heróis aceitam perder o controlo e assim tender para um desfecho positivo, ou rejeitam essa perda e iniciam uma descida para o desespero (caso de Fred/Bill Pullman em Auto-Estrada Perdida, por exemplo, cuja recusa em abdicar da posse de Patricia Arquette o leva justamente a… perder-se). Se conseguirmos ultrapassar o medo cultural que um tal momento nos provoca (e provoca), trata-se na realidade de um momento feliz, porque nos leva no caminho da verdade.
Devemos mergulhar na escuridão mais abjecta para conseguir encontrar as verdades mais puras, à semelhança de um percurso iniciático. E apesar das aparências, David Lynch é um optimista. Ou não tivesse ele lançado uma marca de café espresso com o seu nome.

in Umbigo #21 (2007)


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