books: the future reloaded

Because the only way we can get on with our business is if we finally bury publishing’s corpse and rechannel the energy we’ve spent propping it to build something new. Something that serves the needs not of editors, or marketers, or publishers, or shareholders, or the culture industry, but of writers and readers, who together are recto and verso of the literary community, which is to say, the only thing that matters.
[...]
Literature isn’t a 6-year-old dyslexic girl who has to be drilled on the difference between b’s and d’s and p’s and q’s. Literature isn’t weak. It’s strong. It isn’t given. It takes. It isn’t protected. It protects. And, finally, literature cannot be saved, because literature saves us. When it no longer saves us, it is no longer literature. Perhaps it was once and has lost its relevance; perhaps it never was; the distinction is one we can and should argue about, and if we don’t reach a conclusion that’s a good sign, because a book about which everyone in the culture says the same thing has lost its ability to say anything about the culture—just as a literary classic, to borrow a phrase from the beleaguered Mark Twain, “is a book that everybody talks about but which no one has read.”
[...]
From where I stand, I can see a world not so far into the future in which books are sold only by authors or small collectives through one or two or three online portals that charge a nominal fee for their service rather than gobbling up the lion’s share of revenue.

seven


O cinema está em estado de decomposição acelerada e as partes em que se (de)compõe podem ser facilmente encontradas na Internet, sob as mais diversas formas.  As longas-metragens são realizadas e produzidas de forma cada vez mais modular, por oposição a uma unidade de forma e sentido (“o filme era fraco, mas aquela cena foi espectacular”) e todo o aparato que lhes diz respeito pode ser dividido até à exaustão, desde intervenientes a imagens específicas, a fim de melhorar a sua exposição aos media – para além de trailers, temos teasers e mesmo preview teasers, sempre mais pequenos e sempre revelando mais do que deviam. Esta febre de revelação atinge o seu auge na net, tanto a nível de conteúdos como de rumores sobre conteúdos. Todas as pessoas envolvidas numa produção podem ser focadas ou desfocadas em qualquer fase (mesmo antes de haver sequer produção) consoante as necessidades de marketing. E a Internet precisa de tema de conversa ininterrupto, é um read-show aberto 25 horas por dia e noite, onde as notícias se criam incestuosamente e se canibalizam a galope.
Há demasiados filmes. Temos assim de recorrer ao saber acumulado por outros para podermos chegar a algum tipo de juízo nós mesmos. Nos dias que correm, a Internet pode ser considerada a principal fonte oficial para se falar sobre cinema, substituindo as arcaicas revistas ou a televisão. Falar sobre cinema é substancialmente diferente de ver cinema, desde logo porque é possível discorrer longamente sobre filmes que nunca vimos. E infelizmente o tema é entendido como muito mais fértil que os objectos-fluxo que lhe dão corpo e sentido – existem muitos sites exclusivamente dedicados a assuntos “cinematográficos” que pouco ou nenhum interesse demonstram por filmes em si.
O cinema é a sua própria história e tal como as outras artes ele não é senão narrativa. Uma narrativa que atinge hoje o ocaso e cujo declínio da sua influência global coincide com o advento das comunidades em rede. “A Internet é a nova televisão”, diz David Lynch, que continua a fazer filmes, para além das experiências no seu laboratório/site. A relação entre a Internet e o cinema tem sido ambígua e marcada por equívocos e surpresas, mas eles estão juntos na aurora e crepúsculo das imagens.
A net irá salvar o cinema que interessa e a voragem de informações (embaladas por empresas de comunicação de alcance global) e opiniões (assholes, como dizia Eastwood) arrasta-nos inexoravelmente, já que nos tornámos todos em junkies de novidades e sobretudo de imagens novas (ainda há?). A actual concorrência de meios de comunicação é desleal mas vai convergir em tempo acelerado e desmultiplicar-se em míriades de plataformas móveis, cada qual com o seu ângulo específico. Neste momento o computador é o grande caldeirão de verbos e imagens, antecipando-se e sobrepondo-se à experiência cinemática. Deixemo-nos escorregar preguiçosamente por uma mão-cheia de sítios, evitando contudo as arenas de desperdício semi-verbal que dão pelo nome de fóruns.
Twitchfilm.com é elegante e o mais simpático sobre filmes independentes e de culto, dando destaque aos lançamentos asiáticos mas estendendo-se a outras partes do mundo (entre os muitos colaboradores, destacam-se dois especialistas na cinematografia turca e até um na portuguesa), pequenas mas sempre interessantes produções com temas fantásticos, incluindo curtas-metragens, sucessos de box-office de além-mar e festivais sobre all of the above.
Para pessoas sérias que apreciem o cinema japonês contemporâneo para além de filmes de terror para adolescentes (mas também os incluindo), Midnighteye.com é a sobriedade e clareza incarnadas, com críticas actualizadas, entrevistas com os realizadores, actores e técnicos mais importantes e análises fundamentadas por um gosto genuíno pelo cinema nipónico. E onde se pode igualmente encomendar um livro sobre Takashi Miike, o que é sempre bom.
Para se estar a par da actualidade americana em geral com descontração e cool, Joblo.com satisfaz plenamente, com notícias, críticas e alguns dos comentários mais descomplexados, bem-dispostos e acertados da web, uma variedade apreciável de assuntos e o duplo bónus de incluir inteiramente grátis um sub-site dedicado a filmes fantásticos e de terror  Arrow in the head- e um site irmão sobre as actrizes mais curvilíneas da actualidade – MovieHotties.  Viva o Canadá.
E depois vêm quatro sites tão históricos quanto específicos. Primeiro, o arcano Aintitcool.com, fundado pelo mega-geek Harry Knowles, que respira cinema a sério e cujo site ficou conhecido por postar notícias sobre visionamentos prévios supostamente secretos e determinar o sucesso ou funeral de vários projectos. Com um jargão algo desconcertante e uma apresentação agressiva, o site vive essencialmente à base de pequenas notícias, críticas ou rumores,  por vezes de quase pré-cognição. Exemplo: depois de ter mencionado vezes sem conta o próximo projecto de James Cameron e aventado as mais delirantes hipóteses para o tema, o próprio Cameron telefonou a Harry para o pôr a par do que se estava a passar (estavam a falar de Avatar). Knowles tornou-se uma referência, influindo activamente em argumentos de filmes, organizando o seu próprio festival independente de cinema em Austin, entrando em filmes, participando em programas de televisão, sendo amigo de realizadores e actores e até produzindo filmes de série B. Para além disto, alguns colaboradores fazem parte da indústria, estando bem posicionados para saber o que se passa e sendo geralmente bem-escreventes.
A seguir, a Imdb.com, a auto-proclamada base de dados de cinema da Internet pode tornar-se tão viciante como as notícias do dia. É sem dúvida útil – por exemplo para relembrar a carreira de humor inglês pré-House de Hugh Laurie ou exactamente quantos filmes produziu Roger Corman -, algo sobrevalorizada e com uma secção de coscuvilhices obscenas do business americano.
Para quem gosta de números e estatísticas, o Boxofficemojo.com é o mais indicado, permitindo comparar resultados entre filmes e carreiras de actores e realizadores, numa fascinante viagem no tempo e na realidade – como por exemplo quanto dinheiro fez Blade Runner quando estreou ou qual o filme mais rentável dentro do sub-género “lobisomem”. O site oferece igualmente críticas argutas das estreias mais próximas.
Finalmente, puramente em termos de imagens o Apple.com/trailers apresenta os trailers actualizados de melhor qualidade da net, ponto final. Existem muitos outros sites de trailers, mas voltamos sempre a este. Todos os dias.
Apesar de uma visita a estes locais aprazíveis – entre dezenas de possibilidades mais específicas aos gostos perversos de cada qual - possa fazer brilhar a conversação numa ocasião social elitista – com um comentário incisivo sobre a dobragem em groenlandês da mais recente animação infantil sobre a vida de Kierkegaard ou a qualidade dos efeitos especiais do segundo terço do teaser do próximo filme de retro-ficção científica baseado no diário de um discípulo de Philip K. Dick - , não se deve ignorar o valor e necessidade de leitura de ensaios sobre cinema, como os publicados na Film Comment ou até – horror! – na Cahiers du Cinéma; e naturalmente a experiência pessoal da coisa-em-si, ou seja, ir a uma sala de cinema para descobrir de que raio estamos afinal a falar.

in Umbigo #20 (2007)

a silhueta do desejo




O espartilho é uma das peças de vestuário mais influentes e poderosas de todos os tempos. Iniciático, tanto oculta como dá a mostrar e impõe a sua vontade ao restante vestuário, como um imperador nas sombras. O aparente paradoxo subjugador do olhar e da carne torna-o um perfeito conciliador dos sexos – os homens-visuais e as mulheres-sensações juntos no mesmo deleite, a qualidade apaziguadora da admiração tornando suportável/desejável o desconforto.  No jogo das dualidades, o espartilho é um exemplo justo das contradições humanas entre o que se deve ver e o que se deve esconder, o que se protege e o que se cobiça, a intimidade e a promiscuidade, a submissão e a dominação, o prazer e a dor.
Historicamente, a ideia de espartilho existe desde os tempos primordiais em que as mulheres usavam peles humedecidas em redor do torso, que, uma vez secas, apertavam as suas formas – presumivelmente para melhor atrair os machos dominantes. Com mais ou menos tecnologia envolvida, desde o couro e o tecido às barbas de baleia e ao aço, a engenharia do espartilho sempre foi uma arte tão delicada como robusta, permeando a história do vestuário com a sua influência nem sempre reconhecida, mas sempre presente, com destaque para o século XIX, onde reinou sem oposição, e consequente ressurgimento fulgurante no século seguinte.
Politicamente, foi um dos estandartes das primeiras feministas como símbolo da opressão machista e mártir na fogueira das ideias adversas ao progresso, sendo substituído pelo soutien. Curiosamente, a sugerida incomodidade provocada pelo espartilho nunca se manifestou em termos de igualdade ou disparidade entre os sexos durante o longo período da sua preponderância, mas apenas quando a própria moda contra ele se revoltou, “libertando” as mulheres dos seus atilhos.
Socialmente, o espartilho foi sinal de estatuto - se uma mulher espartilhada era incapaz de realizar qualquer tipo de tarefa prática é porque obviamente não precisava de o fazer – , castidade – as mães espartilhavam as filhas como protecção/correcção, dando perversamente aso a fantasias febris - e condicionador de relações - uma forma de dominar comportamentos mais levianos, obrigando a portadora a exercitar um apertado auto-controlo, sinal de estabilidade mental e emocional – donde a dicotomia em língua inglesa entre “straight-laced” e “loose women”. Em 1886, um anúncio dos espartilhos Warren prometia que toda a gente admiraria uma jovem devidamente equipada e, mais ainda, que assim ela em poucos dias conseguiria um casamento respeitável!
Do mundo da arte, destaquemos duas imagens, já do século XX: a fotografia de Horst P.Horst de uma jovem loura com um espartilho de Mainbocher, um ícone de ressonâncias clássicas; e a de Jeanloup Sieff, com uma elegância nouvelle-vague de modernidade desarmante. Ambas focam a silhueta espartilhada como coluna de força que dispensa quaisquer outros elementos de composição – incluindo a portadora humana, único acessório numa paisagem despojada.
A força iconográfica do espartilho deve-se essencialmente à sua natureza sexual, contudo. Ele é um símbolo de feminilidade, o arquétipo do corpo da mulher materializado numa armadura/prisão, que o divide ao meio - razão pela qual também é tão atraente para os homens, quer os de outras épocas, quer os que se querem parecer com mulheres. Em várias culturas o uso de espartilho masculino é um rito de passagem e a cintura pequena era considerada na moda nos séculos XVI e XIX, ligações culturais que explicam a sua popularidade junto dos “Primitivos Modernos” e adeptos da “body-modification”. Que outra peça obriga tão completamente as mulheres a serem “mais” mulheres, lisonjeando-as ao mesmo tempo que as imobiliza? Ao realçar o peito e as ancas, as duas zonas erógenas mais proeminentes, o espartilho é um convite (visual, táctil e... cruel, porque evidencia simultaneamente a distância e dificuldade do objectivo) ao prazer e está ligado à imagem da fertilidade – os estrógenos, as hormonas sexuais femininas, ajudam a acumular gordura nas nádegas, tornando a cintura opticamente mais pequena. A mensagem seria algo como “não estou grávida, mas sou fértil”. Não é a delgadeza alcançada o factor vital, mas sim a proporção.
A ritualização associada ao espartilho tornou-o numa peça de eleição dos subgrupos sexuais mais alternativos e a sua fetichização natural transformou-o num símbolo simultaneamente transgressor e afirmativo de uma sexualidade confiante. A moda do século XX ilustra bem esta condição aparentemente contraditória. Nos anos do pós-guerra, por exemplo, o luxo estava associado à culpa, razão pela qual a coleccção de Dior de 1947 foi considerada escandalosa, pela quantidade voluptuosa de tecido usada e pela extrema feminilidade dos modelos de cintura de vespa. As mulheres desconfiavam de quaisquer roupas que toldassem a sua liberdade de movimentos recentemente conquistada e o uso de espartilhos foi considerado então fora de moda e depois puramente fetichista. Mas a alta costura gosta de ter amigos em lugares baixos, e o flirt contínuo com as cinturas de ampulheta é bem visível em Gaultier, Lacroix ou McQueen, para apenas citar alguns criadores que re-imaginaram o espartilho como símbolo de luxo, avant-garde e sofisticação. Em épocas de falta de imaginação ou inspiração, ele tornou-se numa “amuleta” regular para estilistas e consumidoras.
O uso normal de espartilho não é desconfortável nem doloroso – a sensação mais parece de um abraço longo e abrangente, que suporta e corrige a postura, cadenciando a respiração e aumentando dramaticamente a consciência do torso. A aparência melhorada motiva naturalmente a auto-estima. E o apertar extremo dos atilhos (o chamado “crush-lacing”, não aconselhável por períodos de tempo muito longos) causa uma pausa na respiração e uma consequente excitação erótica. Evidentemente que se pode pensar que as sensações de dor/prazer provocadas transformaram a sensualidade victoriana “reprimida” em puro masoquismo – o que era, naturalmente, adequado a uma senhora de então. Este constrangimento é particularmente apreciado pelos cultores SM e da imobilização erótica, por parte de dominadoras (imagem da armadura e invencibilidade) e de submissas (a vergonha de usar um espartilho por baixo das roupas de trabalho, de se passear pela casa apenas assim vestida, ou a efectiva limitação de movimentos). Ethel Granger primeiro e actualmente Cathie Jung, alcançaram a notoriedade no submundo das pulsões fetichistas com as suas cinturas de 38 centímetros, medida extrema disputada por várias outras pretendentes ao trono de rainha-vespa. O desafio secreto da sensação de se conseguir apertar mais uns centímetros é um dos estímulos mais fortes para as mulheres se revestirem de bom grado desta segunda pele; tal como ir ao ginásio, os resultados compensam. Quem escolhe usar um espartilho não tolerará desconforto ou uma servidão forçada, e a crescente aceitação de comportamentos sexuais alternativos permite a exploração plena das muitas aplicações do espartilho, tal como o seu uso por cima da roupa se revelou uma peça de vestuário muito sexy e atraente. Objecto-mulher por excelência, o espartilho faz parte integrante da indumentária do Desejo.

in Umbigo #14 (2005)

on fire

“Sometimes a wind blows ,
And the mysteries of Love
Come clear”
(D.L)


O olho ajusta-se à iluminação direccionada, aos contrastes entre a semi-obscuridade dos recantos e o brilho ofuscante que banha certos objectos, o ouvido imbui-se da sonoridade morna e insistente, e ambos se deixam contaminar pela tactilidade que emana das paredes, do solo e do ar – o ar está a arder e este é um pedaço do universo Lynchiano, um universo de onde por vezes não se volta.
Ao longo de um corredor da exposição de David Lynch The Air Is On Fire na Fundação Cartier em Paris, imagens a preto e branco sucedem-se com a cadência de um ritmo orgânico, representando corpos implodidos ou manipulados pela acção do fluir do subconsciente do artista. Desenhos e pinturas inscrevem-se nos mais diversos suportes, reflectindo a espontaneidade do impulso criativo de David Lynch, que gosta de se sentar num diner de esquina em Los Angeles e pensar e rabiscar no papel de mesa ou no guardanapo ou numa caixa de fósforos as ideias/formas que assomam ao seu espírito disponível. Esta disponibilidade da mente para se deixar emboscar pela energia do mar subterrâneo do subconsciente, concretizar as ideias colhidas na criação de uma relação entre narrativa e imagem e assim esforçar-se para criar uma empatia entre as pessoas e entre estas e o universo, constitui a base do trabalho de Lynch – com os resultados que se conhecem e o tornaram único, as imagens e as personagens que nos assombram desde que por ele fomos iluminados.
Lynch costuma afirmar que faz filmes para proporcionar ao público um local para sonhar. Para além disso, assegura que em noventa por cento do tempo que está a realizar, não sabe intelectualmente porque é que está a fazer o que faz. Estas afirmações fulcrais são iluminadas pelo entendimento que Lynch aprendeu a contar histórias sobretudo a partir das suas  influências como jovem estudante de pintura (actividade que manteve paralelamente e em alternância com a de realizador) – concretamente as obras de Francis Bacon, Jackson Pollock, Robert Henri e Edward Hopper. Desde muito cedo que Lynch apreendeu como a narrativa pode levar-nos à verdade e uns aos outros, se nos fizer sonhar. O paradoxo fundamental, contudo, é que a lógica da narrativa pode empurrar a expressão artística para um sistema de convenções e limitações que constitui por sua vez um obstáculo para a mente sonhadora. Tal como Bacon identifica a narrativa como uma expressão da vontade humana e torna o objectivo da sua arte a vontade de perder a vontade própria (“the will to lose one’s will”), Lynch refere a sua determinação em “sair da frente do caminho da tinta e deixá-la falar”, postura que adopta igualmente como realizador, procurando encontrar maneiras de reter a vontade consciente e levar para o ecrã a verdade do sonho. Esta ligação ao subconsciente  é essencial para evitar que as convenções e os clichés a que necessariamente levam coisas como a linguagem abafem a liberdade e criatividade de uma obra artística. Quando realiza um filme, através de processos como a meditação, Lynch procura libertar-se para receber ideias, imagens e impulsos a que de outra forma não conseguiria aceder (ele referiu-se ao procedimento como uma forma de “pesca”). Sonhar significa, assim, um “deixar-se ir” consciente. E este “deixar-se ir” implica uma comunicação, a abertura de uma passagem, entre a “realidade” ilusionista (a imposta por processos puramente racionais, falsamente confortável – a Laura Palmer ferida na cidade de Twin Peaks) e a “verdadeira” realidade (percebida diferentemente por cada um – a Laura Palmer visionária, redimida, do Black Lodge), numa viagem não isenta de perigos e perplexidades.
Os seus filmes foram quase sempre recebidos com estranheza pelo público, pouco habituado a estar disponível para cancelar a sua percepção de formas narrativas convencionais e repetitivas, com os seus lugares “seguros”, e abrir canais de recepção às pulsões mais perturbadoras (mas também mais vitais, mais verdadeiras e, no caso de Lynch, essencialmente positivas) que resultam do choque de subconscientes. Essa estranheza – que pariu a expressão descritiva “lynchiano” - biforcou-se em posições opostas que, a maior parte das vezes, perpetuaram equívocos relativamente à obra de Lynch. Por um lado, os puristas das primeiras obras (Six Men Getting Sick, The Alphabet, The Grandmother e Eraserhead) sentiram-se “traídos” pela Hollywoodização de Lynch (nomeadamente por O Homem Elefante e Dune); os outros rotularam-no de estranho, perverso, voyeurístico, subversivo (o que ele não é), mas sempre com o gosto culpado de o adorarem sem que (ou justamente porque não) o percebam. Ora, David Lynch nunca alterou substancialmente o seu veio criativo e postura como autor ao longo do seu percurso artístico (até INLAND EMPIRE, uma pequena revolução no seu universo pelo uso do vídeo digital, que certamente ditará a forma da sua evolução).
A escolha em criar filmes em Hollywood (e, em diferente escala, o investimento no site de Internet) traduz a sua percepção das contradições, energias e intensidades que existem na cultura de massas e na capacidade (e oportunidade) do filme de Hollywood em potenciar a abertura da cultura às suas verdades, através da mistura heterogénea da autoridade do racional e da autoridade do não-racional, que por exemplo Bacon e Pollock criaram nas suas obras – ao serem menos ordenados em termos racionais, reflectem a forma como realmente percebemos/intuímos (o real). Longe de poder ser considerado um freak (foi convidado por George Lucas para realizar O Regresso do Jedi), senhor de um carisma considerável, Lynch faz parte de uma tradição de um pequeno grupo de realizadores de Hollywood que, tal como ele, no seu tempo foram considerados chocantes ou excêntricos, quando na verdade estavam a criar novas possibilidades para a expressão artística. Dos seus ilustres precursores, destacam-se Alfred Hitchcock e Orson Welles que, parecendo estar isolados em Hollywood, a estavam a mudar para sempre. A sua ligação a Lynch é relevante na medida da influência que atribuíram ao subconsciente na moldagem da sua visão pessoal, mais do que o controlo que se sabe que impuseram às suas produções – existem muitas diferenças de estilo de realização, reflectindo também as respectivas épocas e políticas de estúdios, mas o que nos importa é que o resultado no ecrã das suas obras (em maior ou menor grau) traduz a luta pela expansão da narrativa, pela sua qualidade mais devedora do sonho, no mesmo sentido que Lynch lhe atribui.
A tensão criada pela colisão entre elementos narrativos e não-narrativos na pintura (uma  herança de Bacon), a que podemos acrescentar as possibilidades sonoras do cinema (essenciais na compreensão do seu universo),  permitem a Lynch vislumbrar um local (um “third place”, se quisermos ironicamente usar a expressão da publicidade da Playstation2, para a qual ele contribuiu com anúncios inesquecíveis – incluindo um monólogo de um esquimó cego sobre o que é a visão) que escapa à sobredependência da razão e dos seus clichés, onde o olhar (e a percepção) flui livremente, num movimento perfeito. É conhecida a sua predilecção pela forma do corpo do pato, como modelo de circuito de energia narrativa. A sua elegância e forma de S que evocam um fluxo incessante, ecoam uma empatia entre olhar e forma, a forma que a Arte incarna quando a herança cultural do artista e a Natureza entram em diálogo – e a presença da Natureza sente-se em toda a obra do homem de Montana, com destaque para Twin Peaks e Veludo Azul, com o vento sublime a manifestar a existência do ar como elemento unificador primordial, aquele que está simultaneamente dentro e fora de nós, que nós controlamos e que nos controla. Mas é o olho do pato que desafia o nosso entendimento em como as partes se encaixam, o ponto focal em que nos detemos aquando do nosso passeio visual, dado que destoa vibrantemente do resto do corpo – constituindo simultaneamente o ponto de onde tudo emana. Este “olho-do-pato” é um elemento essencial nos filmes de Lynch, consistindo no preciso momento em que o protagonista é despojado da sua vontade em favor da torrente de acontecimentos que o envolve, prelúdio para a conclusão do filme, mas não no sentido tradicional de clímax (normalmente dependente da vontade do herói). Exemplos destas cenas de “olho-de-pato” são a da casa de Ben em Veludo Azul; aquela em que o Homem-Elefante vai a um espectáculo de pantomima no filme do mesmo nome; e aquela onde Sailor e Lula descobrem uma rapariga a morrer num desastre de automóvel em Um Coração Selvagem. Na aparência gratuitas, todas elas sublinham o momento decisivo em que os heróis aceitam perder o controlo e assim tender para um desfecho positivo, ou rejeitam essa perda e iniciam uma descida para o desespero (caso de Fred/Bill Pullman em Auto-Estrada Perdida, por exemplo, cuja recusa em abdicar da posse de Patricia Arquette o leva justamente a… perder-se). Se conseguirmos ultrapassar o medo cultural que um tal momento nos provoca (e provoca), trata-se na realidade de um momento feliz, porque nos leva no caminho da verdade.
Devemos mergulhar na escuridão mais abjecta para conseguir encontrar as verdades mais puras, à semelhança de um percurso iniciático. E apesar das aparências, David Lynch é um optimista. Ou não tivesse ele lançado uma marca de café espresso com o seu nome.

in Umbigo #21 (2007)


le chat blanc


Margot Fonteyn as Agatha in a 1948 production of Les Demoiselles de la Nuit, a ballet about a young musician who falls in love with the beautiful Agatha - who changes into a white cat at midnight.

et sic in infinitum


The primordial darkness of the universe at the moment before creation, as represented in a plate in Robert Fludd’s 1617 Utriusque Cosmi Maioris scilicet et Minoris Metaphysica, Physica, atque Technica Historia (The Metaphysical, Physical, and Technical History of the Two Worlds, Namely the Greater and the Lesser). The words Et sic in infinitum (“and like this to infinity”) are written on all four sides of the square. 
Courtesy Wellcome Photo Library.

o labirinto infinito

 

"The universe (which other calls the Library) is composed of an indefinite and perhaps infinite of hexagonal galleries, with vast air shafts between, surrounded by very low railings. From any of the hexagons one can see, interminably, the upper and lower floors. The distribution of the galleries is invariable. Twenty shelves, five long shelves per side, cover all the sides except two; their height, which is the distance from floor to ceiling, scarcely exceeds that of a normal book case. One of the free sides leads to a narrow hallway which opens onto another gallery, identical to the first and to all the rest. To the left and right of the hallway there are two very small closets. In the first, one may sleep standing up; in the other, satisfy one’s fecal necessities. Also through here passes a spiral stairway, which sinks abysmally and soars upwards to remote distances."

Jorge Luis Borges

prophecy

“In the time of sinful, soiled, and corrupt custom—in the future—  The demons and spirits of the Planets will infest the world.  At that time, the Demon King Pehar will be very powerful and dominant [his teachings will spread afar].  Thus he said. Because of the powerful influence of the Demon King Pehar, the cases of insanity and nervous disturbance  will be many, the cases of violent death will also be great in number.
At that time half of the populations [of all nations] will become insane; most of the people will cut short their own lives by themselves (suicide); and at that time China will become a dark land.
Powerful men and wealth will follow the steps of the evil spirits and their three cousins
; all Tibet will be broken into small pieces.
At that time, here in the Snow Country, the life and breath of the lamas, the officials, the teachers, the kings, the high officers, and those who follow the Buddhist teachings will be taken away (and persecuted). All the good teachers and virtuous persons will be cut in the middle by the evil demons. People will suffer excessively.”


Padmasambhava