I am the dream that waking does not end

O som abafado da música ecoa ao longo do corredor que A percorre. O caminho é sinuoso, iluminado por néons cuja luz intermitente produz um zumbido característico. Os stilettos dificultam a sua progressão. Quando se apoia nas paredes demasiado próximas sente na ponta das luvas a tinta descascada, a textura da decomposição.

A sente um misto de excitação e mal-estar. Avança devagar, mecanicamente. O som repetitivo das vagas percussões tem uma qualidade hipnótica, induz-lhe uma vertigem doce. Olha sempre em frente, como se à procura de movimento nas sombras que a vão acolhendo, o torso implodido pelo espartilho oculto. Cada inalação fá-lo enterrar-se na carne, sem concessões nem recuos, a pressão transmutando-se num sentimento de desprendimento que não deixa de achar adequado a este momento.

À sua esquerda, o súbito contorno de uma porta. Empurra-a e ela cede, oleada. Parada no corredor, A perscruta o interior.

Uma sala vasta, mais ocultada que revelada pela luz bruxuleante de um longínquo candelabro no chão. Lambida pelo fogo, a silhueta de uma cadeira de braços, maciça. A entra e aproxima-se dela, acompanhada pelo ressoar dos saltos na madeira. No veludo do assento, está pousado um capuz negro.

Olha em volta, mas as sombras permanecem inertes. Com mãos incertas, debruça-se e coloca o capuz, que se revela justo, necessita de ir sendo alisado até cobrir toda a cabeça, engolindo o cabelo curto e moldando as suas feições como uma segunda pele. Apertando um a um os atilhos do cimo da cabeça até à parte de trás do pescoço, descobre que apenas existem aberturas para as narinas e dois pequenos rasgos para os olhos. Fechando-os infinitamente devagar, revê-se no espelho da sua mente com a silhueta da cintura impossivelmente justa, uma estátua de rosto de ébano, indistinto como as sombras que o envolvem.

Subitamente uma mão pousa-se no seu ombro nu, uma presença materializa-se ao seu lado. O toque é firme, A não se volta, deixa-se guiar de volta à cadeira. A pressão convida-a a sentar-se, na pose rígida permitida pelo torniquete do espartilho.

Uma voz feminina, vinda detrás da luz, murmurada, recita um longo poema. A deixa-se afundar no turbilhão de palavras pausadas e repetidas, que remetem para tempos imemoriais, um chamamento das forças residentes que se perpetua num ritual de entrega que bebe dos fantasmas dormentes de cada nova mente a elas entregue, a comunhão com a Sombra. A escorrega lentamente para o interior dos quadros formados pelas imagens que vão surgindo, cada vez mais vivas. Um vago temor eriça-lhe a pele, o coração acelera-se-lhe. Sente-se muito cansada. A voz continua, com uma lentidão insustentável, confunde-se com a escuridão, é a escuridão.

vagueia pela casa, labirinto silencioso. sobe escadas de mármore sem fim, a sua mão enluvada desliza ao longo do corrimão, contacto único com o presente, com o aqui. olhos fechados, caminha com uma determinação ausente.

sente, cheira o ar da noite. abre os olhos para ver diante de si uma piscina de pedra negra. a água totalmente imóvel está vestida de estrelas. ouve os seus próprios passos ecoarem ao longo da borda

Tenta abrir a boca para falar, mas o capuz cola-lhe os lábios. Apalpa-o febrilmente, mas não encontra forma de se libertar, fundiu-se com a pele. A claustrofobia fá-la levantar-se de um salto. Tenta caminhar, mas o chão foge-lhe sob os pés, é incapaz de se mexer. Um gemido abafado é imperceptível do interior da prisão facial.

no reflexo da piscina está nua, à excepção do capuz negro. a água move-se imperceptivelmente na sua direcção, tem a viscosidade de um óleo espesso, morno ao toque, que a envolve lentamente, sobe pelas pernas, cobre a pele

Sente, mais do que vê, sombras entre as sombras perto de si.

- Bem-vinda...